20/04/2015

Deus é um standard de Jazz?

Lerdo como uma tartaruga, cá estou comentando os assuntos que você já deve ter cansado de ouvir falar. Eis que nos últimos dias, Ed Motta deu um piti em seu facebook reclamando da presença de brasileiros em seus shows no exterior. Como sempre, aqueles que adoram atirar a primeira pedra (e as seguintes) malharam o pau e o execraram, mesmo quando, tendo visto o imbróglio causado, o artista resolveu pedir desculpas. Não adiantou muita coisa, já que as Sheherazades da vida sempre pregaram que, já que falhou, que arque com as consequências. Não me admiraria se hackeassem Ed e jogassem na rede possíveis nudes seus. 
O quê? Defendendo um cara que não valoriza o Brasil? Não, não é bem assim. Há muita coisa que pode ser debatida a partir do fato ocorrido. 

Sim, Ed Motta errou feio, errou rude, mas não exatamente em tudo. Sua conclusão é errônea, assim como o modo com que se expressara. Entretanto, é fato que muitas vezes o público, digamos assim, extrapola. Algumas pessoas passam da conta na bebida, outros, por sua vez, não são profundos conhecedores da obra do artista que vêem; tal como chamamos hoje em dia, esses são os posers. Alguns espectadores são comumente invasivos, invadem palcos, camarotes, mesmo quando o artista, depois de uma apresentação exaustiva, só precise de uns cinco minutos de descanso. Não raro, aparecem na mídias matérias sobre complicações entre artistas e seus fãs, ou mesmo questionamento de quão fãs estes fãs são.
O problema, como disse, é a conclusão feita pelo cantor. Ao pedir que brasileiros não mais o acompanhem, digamos assim, ele cria uma espécie de redoma, uma sacralização de sua música - algo que, ao meu ver, é bastante nocivo. Tal comportamento é bastante comum na literatura; muitos artistas partilham da opinião de que a literatura e arte são sagrados, afastando os "pobres mortais". O mais engraçado é que, vez ou outra, os mesmos artistas reclamam de não serem compreendidos pelo público em geral. O importante a perceber aqui é isto: os artistas que acreditam na sacralização da arte tendem a impedir a aproximação do público. Por outro lado, percebendo a falta de boa vontade do artista, o público se afasta e, oportunamente, produz sua própria expressão artística no intento de se satisfazer. Ou seja, Ed Motta, embora certo em se chatear com a conduta de alguns espectadores, erra feio em se sacralizar. Ora, não dizem que Deus é brasileiro? Então por que Deus só ouve standards de jazz? Por que não um pancadão do MC Pikachu? Ou será que, de fato, Deus não está nem aí para o Brasil?
Continuando com a hipótese de um Deus brasileiro, acredito que, em toda sua sapiência, Deus deva tratar a "brasilidade" com a complexidade que lhe é merecida, ou seja, sabendo da pluralidade de um povo que vive em um país tão extenso e singular. O brasileiro do José de Alencar não exclui o de Cláudio Assis, que não exclui o de Villa Lobos, nem o de Mano Brown, Vanessa da Mata, Ana Paula Valadão e, claro, também não exclui o de Ed Motta. Ao ter um comportamento excludente com relação aos diversos tipos de público, acabamos por tirar dele a oportunidade de se abrir a novas experiências artísticas e intelectuais, o que é de fato muito salutar tanto para a arte quanto para o público. A troca de experiências acontece o tempo todo, basta observarmos o quanto mais artistas tendem a se "misturar" uns com os outros. Tom Zé, só para ficar em um exemplo, já colaborou com Mallu Magalhães, Emicida e tantos outros, sem uma necessidade de manter uma hierarquia e sacralização do que faz. Talvez Ed Motta teria sido mais feliz em sua conclusão se tivesse agido com o bom humor visto em seu show recente, tirando-lhe as neuras da cabeça e tornando sua apresentação mais aprazível a gregos e troianos.

Por outro lado, nós deveríamos prestar atenção a uma coisa em especial: o fato de um artista ter posições contrárias as nossas não deveria ser motivo para falar mal de sua obra. Ed Motta é um cantor muito bom, um compositor de extrema qualidade. Dizer que, por causa de suas afirmações, ele é apenas um gordinho chato que tem inveja do tio ou coisa assim me faz lembrar daquele boy que foi xingar muito no twitter porque o Restart, segundo ele, não prestava mais por causa de um problema na entrada do show da banda. Ou seja, é necessário saber dissociar o artista de sua obra. O artista é humano, falho, faz merda como qualquer um de nós. Sua obra, por outro lado, possui características distintas, que representam um recorte da realidade. Ao rechaçar a obra de um artista por causa de coisas que tal artista disse ou fez, lembre-se de que Lewis Carrol tem sua obra (Alice no País das Maravilhas) adorada até nossos dias, mesmo tendo sido pedófilo.  

Sendo assim, vejamos que a arte não é algo sagrado. O artista, muito menos. É importante deixar de ser passional às vezes e manter um pouco de paralelismo e coerência na hora de fazermos nossas avaliações, ainda mais em tempos de ânimos exaltados que temos vivido. Deus está para todos (considerando que exista) e, definitivamente, está mais para samba do crioulo doido do que para standard de jazz. 

Amém. ☺

Deixo vocês com um pouco da obra do grande Ed Motta, sensível e intimista, em seu Chapter 9. 


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