05/01/2012

Vinho Lilás *


A penumbra das nove horas, sala encoberta, obscurecida, onde cintilava apenas uma tentativa de luz vinda de duas velas, já aos desmanches, borbotões de parafina em cima da mesa. As cortinas sopravam um vento chocho que mal se fazia vento, esquentava mais do que aliviava o verão-crepúsculo.  A mesa posta para dois, pratos vazios aguardando, algumas travessas aconchegando alimentos finos; a toalha, uma renda belga, chamava bastante atenção, o branco em choque com o escuro do mogno do móvel e com a treva da espera. Há uns cravos, pequenos cravos arranjados num também pequeno vaso, a sombra deles tremulando enorme na penumbra. O vinho. Tinto. Suave. Um Tawny aberto, duas taças, uma sobre a mesa, cheia, porém intacta; a outra debatendo-se no entremeio lábio-dente, deixando pingar algumas gotas finas, lilases, sobre as pernas.
 
Tudo foi muito rápido, encontros, viagens, abusos, músicas, Jeff Buckley no último volume. Alianças, véu e grinalda. Dinheiro, estabilidade, famílias de posses, conseqüentemente, empregos promissores. Beleza. E com B maiúsculo.

Mas, depois, tédio.

Os bolsos da calça e do terno revirados, ligações estranhas em horários inoportunos. Ócio, hipóteses e conjeturas. Relação tensa, discussão, discussão, discussão. Entre tanto fervor, uma gota d’água.

Então, telefonemas. Vazio. Mensagem de reconciliação, no ensejo de que ele chegue para o jantar. Sete. Oito. Nove. Nada. Sete, oito, nove vinhos, coração espremido nas mãos, sangrando um lilás turvo. Os olhos bem abertos, vista fechada. A porta. Será ele? Abraço, beijo, soco, faca? Vinho. A garrafa. Atirada ao ar, chocando-se contra a porta fechada. Perplexidade, confusão, lágrimas lilases, borbotões de parafina escorrendo. Tato à penumbra. A procura, a espera. Onde?

Onde?

(…)

O barulho de um desabar no chão, gritos desesperados. Os joelhos avermelhados, a boca entre mordidas, penitências, gole seco no vinho, pernas trêmulas, fazendo uma sombra pouca na penumbra. Uma penumbra decaída, decadente, da vida poetizada em reveses que só provam que para o amor ainda não estou pronta.


*adaptação da canção “Lilac Wine”, de Jeff Buckley, para apresentação em reunião do Clube do Conto de 19/11/2011. Tema: “Vinho”. Publicado pela primeira vez no Blog do CAIXA BAIXA.
 
Foto: http://luxuryunplugged.com/wp-content/blogs.dir/77/files/2008/04/istock_000004889034xsmall.jpg

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